
Ela acordou com um medo danado de estar atrasada. E estava. Pulou da cama quase jogando o corpo inteiro para fora dela, lavou o rosto e escovou os dentes, com pressa. Jogou algum dinheiro na bolsa e saiu de casa. Assim que colocou o pé na rua, percebeu que deveria ter levado um guarda-chuva: o céu estava quase preto de tão cinza. Mas não havia tempo para voltar, ela teria que correr muito se quisesse pegar o ônibus a tempo e chegar, pelo menos, 15 minutos depois do horário. Senão, iria chegar meia hora depois e teria de aguentar o sermão da chefe do setor, no escritório triste daquele emprego que odiava.
Ser operadora de telemarketing era um castigo para Marina. Sempre que perguntavam sua profissão, ela se encolhia em si mesma e respondia, com o mesmo orgulho ferido de todas as vezes que ouvia da mãe: “tá vendo? Quem mandou nascer sonhadora e ter cursado Cinema? Agora está aí, mal empregada e infeliz”. A garota ficava ainda mais pequena por dentro e concordava com um meneio de cabeça. Por mais que seu coração não se arrependesse, a mãe estava certa. Apesar de ter amado cada segundo do curso de Cinema, o sonho não lhe trouxe um emprego na área. Aquilo doía tanto que ela não conseguiu mais suportar os “nãos” nas entrevistas, as promessas de telefonemas não cumpridas e os currículos que, certamente, não chegavam ao destino certo. Naquela terça-feira nublada, fazia um mês que havia desistido. Seguiu o conselho da mãe, finalmente. Parou de sonhar.
Enquanto corria para pegar o zero-meia-sete, coletivo lotado de todo santo dia, Marina deixava as lágrimas caírem e pensava que a vida pessoal não estava lá muito boa também. Ser traída pelo namorado não era o final feliz que ela tinha escrito pra si mesma em sua mente criativa. Ela sabia que o relacionamento ia de mal a pior, mas não imaginava que César fosse capaz de tamanha cafajestada. Nem sequer pediu perdão, o salafrário. Apenas deu aquele sorrisinho torto idiota e tentou se justificar: “aconteceu, Nina…” Como se aquelas palavras fossem suficientes. Sorte a dela ter esquecido rápido. Não tinha vocação pra donzela sofredora.
Quando estava na esquina do ponto de ônibus, a chuva começou. E não teve aquele início de garoa fria, não. Já veio atrevida, com pingos enormes que foram direto no cabelo escovado na noite anterior. “Nem pra ter colocado um casaco com capuz”, pensou. Marina se protegeu como pôde debaixo da minúscula parte coberta do ponto, desviando o rosto das ondas feitas pelos carros que passavam a toda velocidade, sem se importar com as pobres almas que dependem de transporte público. Chegaria molhada, infeliz e atrasada. Que falta de sorte.
Colocou os fones nos ouvidos e tentou se concentrar na música. Era a trilha sonora de Pulp Fiction, filme que absolutamente idolatrava. Fechou os olhos por um tempinho e tentou sorrir ao se lembrar dos colegas cineastas. A lembrança foi repentinamente destruída pela água cheia de lama com que um Corolla belíssimo a presenteou. Xingou o motorista de todos os nomes possíveis, mas ele seguiu seu caminho sem nem buzinar. Irritada e com vontade de se jogar na frente do caminhão que passava, Marina olhou para trás, tentando esconder as lágrimas.
Mesmo com a visão embaçada, conseguiu ver uma coisa quase indecifrável jogada no terreno baldio atrás dela, dentro de uma caixa de papelão com abertura virada para a rua. Estava totalmente coberta de lama e parecia… um ramalhete. Coberto de sujeira, claro, mas um ramalhete. Tomada pela curiosidade, ela se aproximou, sem ligar para o temporal, já que estava completamente encharcada. Se agachou e o pegou, sujando as mãos e também as unhas por fazer. Colocou o ramalhete debaixo da chuva e sorriu. Porque conforme o marrom ia sumindo, apareciam lírios. Lírios lindos com uma cor tão bonita que parecia irreal: lilás. Um buquê lilás todo murcho, com uma fita roxa que unia as flores.
Assim que terminou de limpar o buquê, escutou uma voz masculina que dizia: “moça, você vai pegar uma pneumonia…”. Marina olhou. Era um rapaz de olhos verdes, com um guarda-chuva xadrez: “Quer carona até o terminal no meu guarda-chuva? Esse ônibus deve estar atrasado.” E então ela começou a sorrir mais ainda porque soube, naquele momento que aquilo era a mudança de narrativa no roteiro da sua vida. Ela, que não acreditava em destino e odiava comédias românticas, soube na hora que o rapaz de olhos verdes que salvava a mocinha em perigo não estava ali à toa. Marina levantou, com o buquê lilás em mãos e disse: “Claro”.
Que se exploda o emprego idiota, a chefe mal amada e a mãe. Ela havia sido escolhida sabe lá por qualquer força para pegar aquele buquê lilás: o único resquício de poesia naquele ano inteiro. Alguém tinha jogado os lírios ali por falta de amor, por raiva, por desilusão. Marina não seria mais uma, não deixaria o mundo destroçar um sonho. Pegou carona no guarda-chuva do rapaz, ainda com as flores nas mãos, decidida a pedir demissão. Decidida a não desistir.
Talvez você não acredite, caro leitor, mas parou de chover assim que eles atravessaram a rua. E o cara de olhos verdes - que por sinal se chamava Pedro – também adorava os filmes do Tarantino. O sol apareceu, timidamente. E quando Marina olhou para o céu, pôde jurar que ele estava meio tingido de lilás.

Love, Tary