Hoje acordei e fitei o céu. Não como todo mundo faz, apenas vendo, sem realmente perceber o quanto aquilo é magnífico. Olhei com paixão, com entusiasmo; olhei o céu como a gente se olhava.
Reparei tanto na perfeição arrebatadora daquele azul, que até minhas pupilas devem ter sido tingidas de celeste, tentei imitar o desenho das nuvens com meus dedos brincando no ar e quase senti uma textura de algodão vindo delas.
Não, não presenciei esse espetáculo através da grande janela de nosso apartamento imundo - aliás, limpei o apartamento na quarta. Esta manhã eu me levantei, tomei um banho demorado, coloquei aquele vestido estampado com notas musicais que não usava desde o dia dos namorados, preparei um sanduíche de atum e uma limonada bem doce, comi tudo, bem devagar, mas comi; e fui para o parque levando uma cesta de pequenique, uma bolsa de praia, um livro da Clarice Lispector e Chaplin. Não o gênio do cinema mudo, mas meu novo cachorro. É, adotei um cachorro.
Estendi uma toalha com as pontas gastas na grama, acomodei a cesta, a bolsa e o livro de Clarice, afaguei Chaplin demoradamente e, quando meus olhos alcançaram o céu, foram imediatamente sugados pela imensidão azul, não tiveram a menor chance. A admiração etérea foi só o princípio, logo eu estava observando as árvores, as crianças; travessas e com a vida em seus passos, as notas do meu vestido, as páginas do livro, as pontas gastas completamente embaraçosas da toalha, o olhar bondoso e maroto de Chaplin.
Agarrei minha bolsa e procurei furiosamente um espelho, depois de muito procurar, finalmente achei um que pegara emprestado de Samantha e jamais devolvera. O aproximei de meu rosto e, de repente, lá estava eu, no meio de um parque, fitando meus próprios olhos num espelho roubado. Observei minhas pupilas negras e o castanho bonito que compunha minha íris, parecia que podia ver minha alma.
Foi então que eu vi. Meu Deus, estavam aí o tempo todo! Os pedaços, Deus, os pedaços do meu coração! Como eu não pensei em procurá-los nos meus olhos? Como? Tudo o que eu vejo, tudo o que posso contemplar, como não notei antes?
Lágrimas grossas, quentes, repletas de alívio e de fé, caíram sobre o espelho e as respostas abruptamente estavam lá, vivas como os passos das crianças. As partes de mim não eram mais cacos de vidro que me cortariam as mãos se as tocasse, elas se juntavam; se juntavam como peças de um quebra-cabeça mágico. As partes de mim podiam ser tocadas agora, eram palpáveis novamente, eram reais e não doíam como antes.
Ignorei os olhares atônitos para aquela mulher de cabelo roxo, vestido musical, toalha gasta e que chorava sorrindo. Acalmei Chaplin, que estava assustado com o súbito ataque da nova dona, joguei o espelho roubado pra dentro da bolsa, enxuguei as lágrimas, recolhi minhas coisas, me pus de pé e fui para casa.
Agora estou aqui, sentada na cama - sim, tenho uma cama agora -, escrevendo neste caderno vermelho pela última vez. Não que eu ache que escrever tenha me feito mal, foram essas palavras que me permitiram desabafar e me sentir um pouco mais junto de você. Era quase como te abraçar em substantivos, te beijar em adjetivos e dormir contigo em monossílabos.
Mas agora sei que posso seguir por mim mesma: retomo o trabalho na semana que vem, voltei a pintar, estou aprendendo a cozinhar - acho que ninguém fingirá que gosta da minha comida tão bem quanto você - e Samantha me julgou tão melhor que até devolveu os discos do Cazuza, acredita?
Nunca pude sequer imaginar minha vida sem você, Leo. Mas não é porque foi embora que preciso imaginar isso, porque minha vida sempre estará repleta, transbordada, inundada de você. Superar não é esquecer, é prosseguir, enxugar as lágrimas, encontrar os pedaços perdidos e viver com os olhos encantados pelas coisas belas que eles encontram pelo caminho.
Com amor, Clarissa.
P.S: Meus lábios ainda adormecem quando penso em você...
*
Só revelei os nomes no final porque queria que vocês imaginassem os dois como um casal conhecido, sabe? Aquele casal que, mesmo com pouca grana, se ama muito, têm muitas coisas em comum e que nem dá pra imaginar separados. Clarissa não quis encontrar outro grande amor e esquecer Leo completamente, ela só fez um pouquinho de esforço e no fim, as respostas estavam lá. Esta história foi uma das coisas que mais gostei de escrever porque demonstra que podemos sofrer, podemos chorar, podemos não nos conformar num primeiro momento; mas existe uma coisa linda que pode nos reerguer. Uma coisa chamada...esperança.
Love, Tary.